sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Os devaneios de Eva

O palácio encontra-se em silêncio. Ouvem-se ruídos ao fundo. Um automóvel que buzina, motores ao longe que se movimentam. Uma música de videojogo toca ali ao lado, enquanto o fumo do meu cigarro se dissipa no ar numa dança conjunta com o fumo do incenso de chocolate.
Continuo absorta em pensamentos. Em tudo o que Eva me confidenciou. Eva, a inexperiente. Eva, a instável, insegura. Eva, a intuitiva. Pensando bem, Eva assenta-lhe que nem uma luva. Tantas primeiras experiências num tão curto espaço de tempo.
 - Sabes Alice, com tudo o que aconteceu, dou por mim a pensar nele. Sinto saudades do seu sorriso fácil, das suas brincadeiras maliciosas. Aquela despreocupação fascinava-me. - Sim, entendo-te muito bem Eva. Nem imaginas o quanto. Mas ela continua a falar, aluada, alheada do que penso ou possa dizer-lhe.
 - Mas não é só isso, sabes? Ando descontente, desmotivada... sinto um peso no estômago porque parece que não consigo fazer nada para recuperar aquela alegria toda. E isso aborrece-me. Eu aborrecida, imagina! Além do mais, quem iria imaginar que eu iria passar por tanta coisa, e deixar andar tanta outra! Eu, Eva! Nem sei bem se me deva sentir orgulhosa ou encolher-me na vergonha dos meus sentimentos. - E uma vez mais aceno-lhe, enquanto liberto o fumo existente nos meus pulmões. Eva continua perdida no seu discurso, mas já não consigo ouvi-la de forma nítida. Eu mesma me perdi por entre pensamentos. Analiso tudo o que Eva me confidenciou, todas as suas decisões e continuo sem conseguir dar-lhe a resposta que ela tanto procura. Fez bem? Mal? A sua decisão foi a correcta?
 - Ei, Alice! Acorda, não me ouves?! Sei muito bem que a forma mais simples e despreocupada é fugir ao que incomoda, seguir o caminho mais rápido. Pensei em telefonar-lhe, sabes? Com a raiva do que aconteceu... Senti-me tão ferida, que estive com o telefone na mão, com o nome dele ali, no visor. Mas de todas as opções possíveis, optei por apagar o número dele. Desvinculei-me dele para sempre. Não seria justo para ninguém, não é? Se lhe telefonasse, estaria a usá-lo para me vingar da mágoa que senti. Mas ele não foi o responsável por essa mágoa toda. E nem iria saber que tinha existido essa mágoa. E vingar-me de quê? Se depois só tu irias saber o que tinha acontecido? - Eva continua a disparar em todas as direcções as suas questões  pertinentes e sem respostas. Continua a enredar-me nas suas dúvidas e na tal mágoa que a persegue e da qual não se consegue libertar. Apercebo-me disso, quando ela me fala saudosa da sua alegria. Mas eu já lhe tinha dito isso, cada momento da sua vida é importante à sua maneira, seja ele bom ou mau.
 - Eva, Eva... sabes perfeitamente que todas as tuas acções têm prós e contras. Ele magoou-te, mas optaste por seguir em frente com ele. E nenhuma vingança, nenhuma chamada, nenhum encontro com o passado iria apagar o que ele te fez. Fizeste bem em apagar o número. Tu não és como ele. És tu. Sincera, pura. Se lhe fizesses o mesmo o máximo que conseguirias era sentir-te culpada e igualmente suja, se é que ele sente alguma coisa desse género. - Eva fica a olhar para mim, espantada. - Sim, por vezes penso que ele só te usa. Que faz um esforço aqui e ali de ir contra a sua própria vontade, como que numa espécie de investimento futuro. É um miúdo, no fundo... por vezes lembra-me aqueles fedelhos mimados que apenas estão bem quando têm o que querem ou quando as coisas lhes correm de feição. Fora isso, reclama com tudo, bate com os pés no chão, dá murros na mesa porque uma gota de água lhe parece um oceano. Mas foi isso que desejaste para ti, não foi Eva? Acreditaste piamente nas suas palavras e acções em tempos idos, que ele era o teu príncipe encantado, mas vês agora que não passa de um sapo mascarado. - Eva está incrédula a olhar para mim, prende atrás da orelha uma madeixa dourada rebelde e engole em seco. Sim, no fundo ela concorda comigo. Só nunca foi capaz de o expressar, nem mesmo comigo. Por vezes esse é o único escudo do ser humano, proteger-se até mesmo do seu consciente, para evitar a mágoa imediata. Embora saiba contudo que, prolongando isso no tempo, a mágoa será ainda maior. Mas desejando no fundo que esse escudo se torne real e que com o tempo, tudo o que sabemos real, não passe de um infundado receio.
 - Nunca foste tão sincera assim comigo Alice... E não tinha a mínima noção que pensavas assim de tudo isto. Pensei que estavas bem, feliz e... 
 - E nada. - interrompo-lhe. - As coisas são como são. Acontecem e não há nada que faça o tempo voltar atrás. Sabes que optei pelo silêncio. Até contigo Eva, me tenho mantido em silêncio. Escuto-te claro, e tento acalmar-te, mas voltei a subir os muros. Não quero que te magoes mais, por isso não penses mais. Prepara-te para o pior e só assim terás o sabor requintado de toda e qualquer pequena alegria que porventura apareça pelo caminho.
Eva esboça um sorriso terno. Observo-lhe o semblante muito mais leve, como que finalmente tivesse sido desmascarada mas por quem não lhe oferece perigo, eu. Observo-a enquanto suspira. Traz os cabelos dourados soltos, com caracóis largos feitos pelo ferro de frisar. Parece uma menina vestida de rosa pálido, com um vestido de organza de várias camadas que dão volume às saias rodadas. O vestido tem corte de império, evidencia-lhe o peito pequeno e cai até pouco acima dos joelhos. Olhando assim para ela, parece que este ano não teve nada que lhe afectasse. Incrível como nos escondemos dentro de nós próprios.
 - Bem! - Eva levanta-se de repente começando a saltitar no meu quarto. - O que esperas? São 18 horas neste preciso momento. Vá, anda lá! Vou ajudar-te na tua toilette. Sim, sim... sei que não vais a lado nenhum especial, mas tu és especial Alice! Parece que andamos trocadas, não é? Eu aqui toda arranjada e cheia de dúvidas e tu tão consciente e racional, mas sem vontade para nada! Não pode ser, não é? - E com isto abre as portas e segue para o closet para remexer em casacos, vestidos, blusas, saias...
Suspiro a olhar para ela e quase me dá vontade de rir ao observá-la com tanta energia. Mas não me levanto. Fumo mais um cigarro e mergulho novamente nos devaneios iniciais de Eva. Porque haveria eu de me arranjar e produzir para ele, quando tanta mágoa provocou nela? Será que ele consegue sequer imaginar?
 - Eeeei! Então Alice? Mexe-te vá! Olha as horas, não o vais deixar à espera, ou vais? - E com isto torce o nariz, sabendo que, se eu me atrasasse, não iria ficar minimamente preocupada. E ri-se, enquanto diz em silêncio "Sua peste!", e pisca-me o olho.

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